segunda-feira, 4 de maio de 2009

Pajelança Cultural





Um certo João de Deus

Uma pessoa que emana luz por todos os poros jamais passaria pela vida em branco, e com João de Deus não foi diferente. Ser raro, daqueles que a gente sabe como é difícil, quase impossível encontrar, João tinha nos olhos, na alma e no sangue o germe belo e cruel da poesia. Por isso infectava a todos com coisas; com sentimentos fantásticos.
Para João qualquer espaço era um palco, pois vivia de forma tão contundente a concepção poética que não a separava de outras atividades. Dormir, acordar, comer, cantar, viver, amar, constatar, explorar, vivenciar, tudo em João era arte absoluta e inegociável, e talvez exatamente por isso tivesse nome de Deus.
Contam mentiras por aí à respeito de João, eu sei. Dizem por exemplo que ele era um homem simples. Mentira. João era um duende. Estava em um estágio muito além do simples na cadeia evolutiva da alma humana. Simples eram seus gestos e a ternura com que impregnava o ambiente. Mas João, em si, era um ser profundamente complexo. Tão complexo quanto à imensa teia que envolve todas as possibilidades de amor e arte existentes no nosso planeta. E até em outros planetas.
Há quem cultive, inclusive, a possibilidade de que João tenha vindo de outro planeta. Não. João era da terra. E por ser da terra, divertia-se ao embaralhar todos os elementos: terra, água, fogo e ar, confundindo os olhos e a mente, volátil, dos amigos, dos passantes e dos expectadores. Confundia, encantava e extasiava-nos, a todos nós, piscianamente.
Sim, piscianamente, pois outra mentira deslavada é negar sua qualidade de pisciano nato. Não importa o dia, mês e ano em que nasceu. João não viajava em poemas ou sons psicodélicos, ele era a própria viagem. O motivo da jornada e o objetivo a ser alcançado. E era da água, pois fluía, como peixes. Proferia versos fortes e se espalhava sereno sobre toda a humanidade.
João meio que misturava tons azulados de céu com as cores, nem sempre tão bonitas, que se tem pela cidade. E o fazia de tal forma convincente que quem olhava de perto nem reparava o cinzento colhido em alguma esquina, em algum começo de tarde. Só se percebia a claridade, o brilho incomensurável que, emprestado aos fatos, os faziam transbordar pelas margens do papel ou pelos limites do palco, fosforescendo o ambiente.
João era como um náufrago buscando desesperado as barras do continente, não para lutar pela sobrevivência, mas para levar vida à terras desoladas.
João era assim. Uma porção enorme de tudo, distribuindo-se, intensamente, como forma de se contrapor ao nada.
A poesia de João é hoje nossa morada. Por isso estamos todos aqui. Presentes. Agarrando com os dentes a poesia que passa brilhando ao nosso alcance. Foi assim que aprendemos a honrar nosso duende.


Vicente Portella

Um comentário:

Unknown disse...

Texto esplêndido!Daqueles que nos torna íntimos de seus personagens e paisagens.

Saudações!
Luciana Reigada Lopez